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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Azevedo Silva - Carrossel


«Durante alguns anos traduzi press releases. Não foi o trabalho mais enriquecedor que tive, quanto mais não fosse porque ao fim de uns quantos descobri que diziam todos o mesmo: que os últimos trabalhos de cada artista eram sempre os melhores, aqueles que melhor expressavam a sua sensibilidade e individualidade, sempre um melhor produtor, sempre novos instrumentistas, sempre colaborações surpreendentes, sempre improváveis cruzamentos de referências, sempre algo novo ou inédito, sempre uma enriquecedora experiência espiritual, ou mundana, ou as duas coisas, sempre uma banda mais unida do que nunca; sempre um texto publicitário de formalidade, redundante, não particularmente interessante, com o objectivo de vender um produto a comerciantes, facilitar a vida aos jornalistas e chamar a atenção do público e crítica. 

Foi um Azevedo semi-desiludido, semi-derrotado que me chegou ao estúdio, um daqueles precoces a quem a crise de meia-idade chega com vinte anos de antecedência. Sublinhe-se que um actual desiludido é um antigo optimista, alguém que teve problemas a gerir ambições e expectativas e que agora anda às voltas com os clichés do costume: estarei-a-fazer-a-coisa-certa?deverei-corrigir-o-rumo? valerá-a-pena-o-risco-ou-deverei-calar-me-e-conformar-me? Mais os complementos circunstanciais: alicerces que caem, velhos que morrem, casamentos que falham, a sensação de não pertença, a desorientação, a ausência aparente de pontos de referência. Aqueles que nasceram na ressaca de Abril sofrem agora as consequências, os mesmos que antes eram a geração rasca são agora a geração subprime, entalada e encostada às cordas do ringue, sem futuro, sem opções e com as ideias asfixiadas. Resta a irritação latente provocada pela indiferença dos outros: pessoas singulares que cedem ou desistem, pessoas colectivas que se aproveitam disso, instituições maniqueistamente à deriva, uma cultura popular alienada que comunica pouco, mal ou aos urros. Como conseguir ser optimista numa circunstância destas? E como falar destas coisas sem pretensões de intelectualismo? Porquê correr o risco de parecer um velho do Restelo ou um idiota? Porque, apesar de se ter cansado de acreditar, o pessimista é apenas alguém que deseja estar enganado. 

Um conhecido filósofo deu-se um dia ao trabalho de escrever um prefácio a justificar a razão pela qual não faz qualquer sentido escrever-se um prefácio - o livro tem de ser capaz de se explicar por ele próprio, dizia ele - e demonstrou-o pormenorizadamente em sessenta páginas. 

Apenas para contextualizar, Azevedo Silva é um cantautor. No Brasil apelidaram-no de fado-indie, o que faz sentido, dada a estética predominantemente acústica, a tonalidade predominantemente negra, a textura urbana e a influência do rock. Em 2010 apresenta-se com Carrossel. Oiçam o disco, com sorte reconhecerão nele alguma coisa do que aqui está escrito.»

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